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Catarina Eufémia. O coração que 'batia comunismo' vai-se apagando aos poucos

Com apenas 26 anos, Catarina Eufémia perdeu a vida numa manifestação de trabalhadores que lutavam por melhores salários e condições  de trabalho. O PCP transformou-a em símbolo da revolta contra o Estado Novo. Se fosse viva, completava hoje 90 anos.

“Chamava-se Catarina/ O Alentejo a viu nascer/ Serranas viram-na em vida/ Baleizão a viu morrer”. Pela voz de Zeca Afonso, a história de Catarina Eufémia foi ficando guardada nas memórias do comunismo alentejano. A camponesa que deu a vida pela revolução dos trabalhadores, se fosse viva, faria hoje 90 anos.

Nascida a 13 de fevereiro de 1928, Catarina Eufémia era filha de camponeses e vivia em Baleizão, concelho de Beja. Casada, com três filhos e um espírito muito politizado graças à influência do marido, Catarina protagonizou uma das mais simbólicas lutas da região alentejana contra o Estado Novo. O seu rosto tornou-se símbolo da luta antifascista e a sua memória passou a figurar na memória do Partido Comunista Português.

No entanto, diz Pedro Prostes da Fonseca, autor do livro “O Assassino de Catarina Eufémia”, sobre questões ideológicas, existe uma grande divergência. Apesar de não existirem provas de que Catarina estivesse ligada ao PCP, o marido teve um historial relacionado com os comunistas, estando mesmo marcado pela PIDE. “Ela fazia distribuição de jornais clandestinos”, conta, lembrando que “era uma pessoa que politizava as pessoas à volta.” “OCarlos Brito [antigo dirigente do PCP] dizia-me com muita graça:‘Eu não sei se ela era comunista ou não era comunista, mas que no coração dela batia comunismo, batia’”, conta o autor entre risos.

Da história de Catarina sabe-se que em 1954, com apenas 26 anos, a camponesa foi protagonista de uma greve para reivindicar aumento de salários e melhores condições de trabalho. No momento em que tentaram falar com o proprietário, este acabou por chamar a GNR,que rapidamente acorreu ao local. 

“A partir daí, as histórias divergem”, afirma Prostes da Fonseca. “O PCP faz a história deles, que foi assassinada [premeditadamente]. Eu, no livro, não dou isso como certo, porque nunca ficou, na verdade, provado”, explica. Segundo as provas que encontrou, “não há dúvida de que ele lhe deu um estalo e ela caiu, e quando se levantou, ele empurrou-a com a arma e a partir daí dá-se o disparo, três tiros.”

Prostes da Fonseca coloca em cima da mesa a possibilidade de o homicídio ter sido acidental porque “aquelas armas disparavam sozinhas muitas vezes”. “Que ela foi assassinada foi, que foi premeditado...”

O tenente Carrajola, o segundo responsável pelo corpo de intervenção de Beja e autor dos disparos que levaram à morte da ceifeira, foi depois julgado, explica o escritor, que conseguiu encontrar o processo perdido do militar. “Ao contrário do que o PCPdiz, ele foi julgado, houve uma altura em que um procurador tentou apertar com ele, mas depois, no fim, foi absolvido de uma forma até caricata.” “Oacórdão diz que ele acabou por ter dado um pequeno toque com a mão na cara da camponesa e a arma disparou sozinha”, recorda.

“A verdade é que este tenente acaba por ser um bocado a imagem do que era o regime: austero, uma pessoa que fazia cumprir ordens”, explica o também autor de “Contra as Ordens de Salazar”.

Ainda hoje, Catarina Eufémia é um símbolo para os comunistas. Em Baleizão, no sítio onde “ficou vermelha a campina/ Do sangue que então brotou”, como cantava Zeca Afonso, está agora uma foice, em homenagem à luta dos comunistas alentejanos. Etodos os anos, na data da sua morte, 19 de maio, o PCP mantém vivo o sacrifício de Catarina Eufémia com uma romagem ao monumento, com a presença do secretário-geral Jerónimo de Sousa. No entanto, segundo o PCP, para assinalar o dia do nascimento não está prevista nenhuma iniciativa. Mesmo este ano, em que a data é redonda e calha num dia de tolerância de ponto.

Uma geração sem Catarina Eufémia

Para muitos portugueses, nomeadamente os mais jovens, o nome de Catarina Eufémia não passa hoje de uma rua ou de um largo. “ACatarina tem uma importância enorme, basta ver a quantidade de ruas, praças, pracetas, largos que há em Portugal – especialmente no Alentejo e na zona industrial de Lisboa [para onde vieram grandes comunidades do Alentejo rural nos anos 60] – para ver a importância que teve”, diz o autor. No entanto, entre as pessoas, a história está a perder-se. “Eu fiz o lançamento do livro em Baleizão, na sociedade filarmónica”, conta Prostes da Fonseca. “Disseram-me, ‘atenção que Baleizão não vai ligar nenhuma’, mas eu quis ver com os meus olhos a força que a Catarina teria ainda, neste momento, em Baleizão. Foi uma coisa terrível porque estavam sete ou oito pessoas a assistir à apresentação do livro – uma delas era a filha de Catarina – e cá fora estava imensa gente a beber cerveja e a fazer barulho.”

“Ela continua com a sua estátua no largo central de Baleizão, continua lá a foice e o martelo no local onde supostamente foi abatida”, agora, “a malta mais nova – a sensação com que fiquei – é que não, não tem qualquer interesse.”

Quando questionado sobre a importância desta parte da história, Prostes da Fonseca não tem dúvida de que“faz sempre sentido recuperar a memória histórica”. “É uma pena a história da Catarina ter desaparecido aos poucos, várias pessoas a cantaram, a escreveram – como Sophia de Mello Breyner [no poema “Catarina Eufémia”] –, ela foi muito importante culturalmente. No fundo, é a nossa história. OEstado Novo não tem assim tantas histórias de pessoas que resistiram para Portugal se poder dar ao luxo de passar quase uma esponja por cima desta figura”, critica.

Publicado por: Jornal i