Economia

“Houve violações éticas gravíssimas de um ex-primeiro-ministro sem nada se ter passado”

Miguel Poiares Maduro salienta que Portugal não tem níveis de corrupção acima dos países europeus, mas aquela que tem é grave e preocupante.

Em breve o BCE deverá alterar o programa de compra de ativos. Que impacto é que essa redução poderá ter no custo de financiamento de Portugal?

Na medida em que a economia da zona euro no seu todo recuperou, o risco é limitado para Portugal no curto prazo. Mas se nós não afrontarmos problemas estruturais que continuamos a ter na nossa economia existe o risco de uma nova crise da Europa nos poder levar rapidamente uma situação de incumprimento. Enquanto não resolvermos o problema do nosso endividamento e os problemas estruturais que ciclicamente nos levam a desequilíbrios externos, estaremos sempre numa situação de enorme fragilidade.

As agências de rating têm melhorado a perspetiva sobre Portugal, acha que a República já merece uma subida apesar da elevada dívida e do elevado rácio de malparado dos bancos?

O problema do crédito malparado dos bancos é um problema extremamente sensível e não é exclusivo de Portugal. O Governo tem globalmente atuado bem nessa matéria em linha com o que tem sido feito na Europa, que tem conduzido a resolução do problema de forma progressiva. Muitas vezes diz-se que deveria ter havido uma solução, no âmbito do programa de resgate, para assumir de uma só vez toda a extensão dos problemas do sistema financeiro, mas isso implicaria para Portugal um programa de resgate muito superior com o consequente reforço da austeridade e dos custos sociais para os portugueses. Não havia uma solução fácil, a adoptada foi, muito provavelmente, a mais adequada. Isto é, promover uma redução do défice e uma recuperação da economia e esperar que os bancos recuperem de uma forma gradual, o que demora mais tempo. O primeiro-ministro começou por falar numa solução para resolver o malparado dos bancos, mas isso provavelmente implicaria uma garantia pública e um possível auxílio do Estado, que seria chumbado por Bruxelas. A única solução teria que ser europeia com alguma partilha de risco, mas essa é uma solução extraordinariamente difícil de conseguir, pois a vontade política e o apoio popular nalguns Estados para isso é muito limitado.

O Ministro da Economia disse numa entrevista ao El País que o Governo acabou com a austeridade e adoptou uma política moderada e responsável de devolução dos rendimentos a trabalhadores e pensionistas. Concorda com esta afirmação?

É preciso corrigir essa afirmação pois a devolução dos rendimentos não começou com este Governo. O Governo anterior já tinha reposto quase todas as pensões. As únicas que não tinham sido repostas quando o atual Governo chegou ao poder foram as pensões mais altas, acima dos 4.500 euros. O que este Governo fez foi acelerar o ritmo de reposição dos salários da função pública e repor as pensões acima de 4.500 euros. O segundo ponto a corrigir é que não foi essa aceleração da recuperação de rendimentos que trouxe a recuperação económica. A economia já estava a crescer quando o Governo anterior terminou funções, e acima aliás do crescimento económico do primeiro ano do atual Governo. É preciso também não esquecer que este Governo só pode hoje em dia fazer a recuperação dos rendimentos porque o anterior Governo conseguiu descer o défice de 11% para 3%.

Em outubro teremos as autárquicas. O que seria um bom resultado para o PSD?

Esses exercícios especulativos não servem para muito. Qualquer bom ou mau resultado é sempre assumido pelo partido e pelo líder do partido, agora daí tirar conclusões sobre a liderança de Pedro Passos Coelho parece-me sem sentido. Ele não o fará, nem o deve fazer.

O seu principal projeto europeu no Instituto Universitário Europeu é a criação de uma escola de governação para formar as elites da administração pública e política a nível transnacional. Quer explicar?

O Instituto Universitário Europeu criou uma nova escola – Escola de Governação Transnacional – cujo o objetivo é formar elites quer para administrações nacionais dos Estados –, quer para administrações de organizações transnacionais como a União Europeia, organizações regionais noutras partes do Globo, ou organizações internacionais, como o Mercosul. E entendíamos que não existia nenhuma instituição de elite, de topo, para formar esse tipo de quadros. O nosso objetivo foi precisamente o de criar essa instituição. Estamos agora numa fase inicial. É um projeto emblemático que o presidente da Comissão Europeia, Juncker, assumiu já publicamente ser uma prioridade. É um projeto que tem muito a ver com uma preocupação forte minha, que é a de criar melhores políticas públicas. É muito importante desenvolvermos condições para termos boas políticas públicas, e isso implica apostar também na qualificação daqueles que no topo da administração pública preparam essas políticas públicas e executam essas políticas. Acho que era muito importantes termos isso em Portugal.

A ética devia fazer partes das disciplinas curriculares do ensino? Evitaria a corrupção…

Seguramente devia fazer parte da formação de qualquer pessoa. Nós não temos níveis de corrupção superiores a outros países europeus. Mas aquela que temos é grave e temos atualmente suspeitas graves relativamente a pessoas que tiveram posições importantíssimas no nosso país e isso tem de nos preocupar. Tão preocupante como a corrupção ter ocorrido, independentemente das questões criminais a decidir pelos tribunais, é ser já claro que existiram violações éticas gravíssimas por parte de um ex- primeiro-ministro e essas violações éticas terem ocorrido durante tantos anos sem nada se ter passado no país. As pessoas terem sido corrompidas diz algo sobre as pessoas. Mas aquele padrão de comportamento ético ter sido possível tantos anos por parte de um primeiro-ministro sem nada se ter passado diz, infelizmente, também muito do país. Eu acho que isso devia levar o país todo a uma reflexão profunda, em particular as suas elites e os media.

Foi afastado do Comité de Governação da FIFA, um ano depois de ter entrado para o cargo, o que é se passou?

Vou brevemente falar de forma mais aberta sobre várias das coisas que se passaram quando estive na FIFA. Há uma regra no Código de Ética da FIFA que impõe reserva e confidencialidade aos anteriores membros de órgãos da FIFA, mesmo os que saíram descontentes como eu e os meus colegas do Comité de Governação e do Comité de Ética (que também saíram). Mas eu sempre disse que me sentiria obrigado a falar sobre tudo no caso de existir algum inquérito parlamentar, ou outra circunstância do género. Ora eu fui convidado recentemente, e vou falar em breve, a um parlamento europeu, no contexto de uma audição e de um inquérito que esse parlamento está a realizar sobre os problemas na FIFA. Neste momento ainda não posso falar com toda a liberdade sobre o tema. Mas direi o seguinte, a minha conclusão é que há um problema sistémico na FIFA que não aceita o escrutínio  independente à atividade dos seus órgãos e dos seus membros. E a razão fundamental pela qual eu e os meus colegas saímos é porque nós estávamos a exercer esse escrutínio independente. Do meu ponto de vista aquilo que se passou connosco comprova que esse escrutínio independente, esse controle sobre a governação da FIFA só irá ocorrer efetivamente se for imposto de fora, e  na minha opinião só os Estados Unidos e a União Europeia estão em condições de o fazer.

O controlo interno foi impossível?

Basta ver que tudo o que estávamos a fazer: O controle das eleições, tínhamos adoptado regras para controle dos próprios processos eleitorais, estávamos a começar a legislar sobre o controlo do financiamento das campanhas eleitorais à presidência da FIFA (ninguém fala disso) tudo isso parou desde que saímos. Como é que se financia uma campanha para a presidência da FIFA que custa milhões? Quem é que paga? Ninguém sabe, qual é a transparência disso? Era uma das coisas que estávamos a começar a regular, da mesma forma que já tínhamos adoptado regras para o próprio processo eleitoral, onde a compra de votos era generalizada. Detectámos também imensos casos de conflitos de interesses, por exemplo decidimos que o vice-primeiro ministro da Rússia não podia ser reeleito para o Conselho Executivo da FIFA, não foi uma decisão facilmente aceite e portanto tínhamos a percepção que estávamos a tomar decisões difíceis e complicadas. Mas essa não foi a única decisão de exclusão que tomámos. Para nós era muito simples, a prova dos 9 sobre a vontade da FIFA se reformar internamente iria ver-se sobre a manutenção dos membros do Comité de Governação e do Comité de Ética, apesar de termos tomado essas decisões. Não foi isso que aconteceu, o que torna claro que não é possível fazer uma reforma da FIFA a partir do interior. Na FIFA há um controlo de votos feito por um pequeno conjunto de pessoas. Mas um dos problemas mais graves começou quando se começaram a multiplicar federações muito pequenas. Como cada federação tem um voto, começaram-se a multiplicar federações muito pequenas. Cada ilha em que fosse criada uma federação e reconhecida como tal, era um voto.  Por exemplo a CONCACAF (Confederação de Futebol da América do Norte, Central e Caribe) é uma da mais poderosas, e foi aí que começaram os problemas de corrupção, porque todas as ilhas são federações e conseguem controlar imensos votos dessa forma.

[actualiza com parte da entrevista sobre a questão da FIFA, que por questões de limitação de espaço não foi incluída na versão em papel]

Artigo publicado na edição digital do Jornal Económico. Assine aqui para ter acesso aos nossos conteúdos em primeira mão.

Publicado por: Jornal Económico